Sim. Sim, lembro-me. (diário de verão)
- Sofia Dias
- 29 de jul. de 2024
- 3 min de leitura
Atualizado: 31 de jul. de 2024
Madrugada de 29/7/2024, Fronteira.
Li algures que a pergunta “Lembras-te?” é "uma imposição de ternura no meio da lembrança, a revelação de quem cede num jogo em que nos ensinaram que esquecer é seguir em frente". Assim que questionamos o destinatário, "sacrificamos com gosto o presente por aquele passado em que éramos mais alguma coisa".
Este verão, se fosse resumido a uma só palavra, tropeçaria nos pés de “Lembras-te?”. A maior parte das palavras que estão a ser paridas servem para sustentar a resposta à tal pergunta. Quero que a resposta seja “Sim. Sim, lembro-me”. Quero, desesperadamente, freneticamente, lembrar-me de tudo. Quero que o cheiro da minha avó fique marcado no meu nariz para sempre. Quero sentir o beijo da minha mãe marcado na minha bochecha. Quero as marcas dos dedos do meu pai nos pés, seu sítio predileto para me fazer cócegas. Quero abraços fortes do Tomás na piscina marcados no meu pescoço, porque diz que sou a sua prima favorita. Quero o sorriso de tubarão do Martim vidrado nos meus olhos. Quero os poemas do avô marcados nos meus ouvidos.
Tenho sentido a ânsia de não esquecer. E eu sei que sempre tive boa memória no que toca a amores dos grandes, mas o medo assola-me à noite. O registo é importante, porque sei que quando me perguntar: “Lembras-te?”, terei tudo isto para que a resposta à pergunta seja sempre afirmativa. A não ser que me esqueça de como se lê. Aí, estamos fodidas, Sofias do passado, futuro e presente.
É impossível, claro, separar o desejo de fazer fotografias mentais de sentir que os protagonistas das mesmas me estão a escapar pelos dedos. Bloqueio ao pensar nisso. Não sei qual será a reação que terei quando já não os poder agarrar e isso assusta-me, pavorosamente. Porque, foda-se, eu nunca fui de largar e se for preciso prendê-los entre parágrafos e pontos finais é o que farei. Cativos aqui. Pronto.
--------
Vamos, então, aprisionar o dia de hoje. Vim com a Nana, o Tomás e o Martim para Fronteira de manhã. Havia trânsito na Vasco de Gama, a Nana aproveitou para fazer um questionário aos diabretes do banco de trás. Soube a capital de Portugal, de Espanha, o nome do Presidente da República, quantos irmãos tem o Martim e qual é a cor do sinal quando os carros têm de parar.
Chegámos, o Martim quis almoçar comigo em casa da avó. Comeu um Magnum, versão marca do Continente, maior que ele e, eventualmente, quis voltar para a sua própria avó. Fiz uma sesta de 3 horas, porque no dia anterior me tinha deitado tarde. Fui à horta com a avó, reguei plantas com o Tomás. O Martim teve medo do gatinho, mas o Tomás ajudou-o a passar por ele, abraçando-o e tranquilizando-o, “Está tudo bem, Martim, ele não faz mal, okay?”.
Voltei a casa da avó. Tomei banho, porque me estava a sentir muito suja. Passei uma máscara pelo cabelo, porque está demasiado “palha de aço”. Jantei sopa e um pêssego um pouco duro. Vi a novela turca, dobrada em castelhano e legendada em Português, na Sic Mulher, com o avô e a avó. Eu e o avô cantámos a música que aparece nos momentos dramáticos. Lembrei-me da mãe da Inês, porque ela também vê religiosamente.
Sentei-me no poial com a avó, ela foi buscar a cadeira de verga para eu me sentar. Li-lhe crónicas da Madalena, ela gostou especialmente de uma chamada “Devia ir mais a Tondela”, tal preferência foi, certamente, uma indireta do género: “É bom que quando tiveres a tua casa e um emprego, continues a vir a Fronteira, sua chibinha.”. Comemos um Magnum, mais pequeno do que aquele que o Martim comeu.
Eventualmente, Rita e Zé Maria foram-se deitar.
Eu vesti a camisa de noite da bisavó louca, que fingiu a sua própria morte, ingerindo o famoso “chá da morte”, que consistia em cabeças de fósforos misturadas com água.
Espero reencarnar nela.
--------
Sabe bem sentir que alguém nos espera em sua casa. Que alguém nos espera em sua casa para cuidar de nós. Eu sei que, quando se forem embora, vou entrar em pânico como entrava quando não via ninguém à porta da escola para me vir buscar.
Lembras-te?
Sim, começava a achar que ia dormir com o Senhor Paulo, porteiro da escola, no ginásio de educação física.
Lembro-me.
(ps: frases iniciais do "Deriva", de Madalena Sá Fernandes.)
Comentarios