A tristeza que não grita que é triste
- Sofia Dias
- 11 de ago. de 2024
- 3 min de leitura
Atualizado: 19 de ago. de 2024
"Mais baixinho...
Baixa o som no comando que não me consigo ouvir a pensar!
É nesse botão do menos."
"Qual?"
"Esse!"
"Ah, já está!"
"Raio do homem..."
Senhor Goucha,
Vou-lhe contar.
Quando admito que estou triste sinto-me uma puta.
Sim, uma puta.
P-U-T-A.
Acho que tenho um problema de natureza fundamental.
Não consigo admitir que sinto coisas,
Que penso coisas,
Sem sentir que as estou a vender como peixe ali ao fundo da rua.
QUEM DÁ 5 EUROS POR ESTARMOS TRISTES?
QUEM DÁ?
ORA, POR UMA HORA DE CRISE EXISTENCIAL ATÉ DOU MAIS!
POR UMA NOITE EM QUE ACHAMOS QUE ENGORDÁMOS POR CAUSA DE X COMPRIMIDO,
EU DOU 100!
ADORO ESSE PEIXE,
COMO TODOS OS DIAS AO ALMOÇO!
COMO DEVIA, SENHOR GOUCHA!
QUE É PRECISO ALIMENTAR ESSE CORPO!
"Isto...
O problema é do mundo, homem!"
(diz Maria da Tristeza, apontando para a televisão.)
"O mundo mercantilizou a tristeza."
"Pois foi, pá.”
"Quem é triste é bom!"
"É profundo, pois!"
"É POETA!"
"Nem mais!"
Tristeza santificada.
Mãe de Deus.
Mãe de nós pescadores,
Agora
E na hora
Da nossa morte,
Amén!
A tristeza puta, que se vende, mas que é santa.
"Isto era bom bom quando ser triste era só ser triste, pá!
LET'S MAKE SADNESS GREAT AGAIN!"
Eu cá como não quero andar a mostrar que tenho algum peixe para vender,
Guardo-o.
Há que ser humilde, senhor Goucha!
Ah pois é...
Vá lá!
Chora-se,
Mas chora-se em silêncio.
Chora-se,
Mascarando o choro com filha da putice, claro.
Para o pai.
Para a mãe.
Para a avó,
que nem sequer está em Lisboa, já agora.
E para a porra do vizinho que só fuma erva.
"Ora, assim sim.
A tristeza que grita, mas que não grita que é triste!"
"Então, o que grita, Maria da Tristeza?"
"Ora, homem, grita outras coisas! Coisas feias!"
"Que menina feroz esta Tristeza me saiu..."
Guarda-se o peixe, que o inverno pode ser duro.
A minha tristeza que não sabe chorar.
"Que talentosa, minha rica menina!
Minha Tristezinha
Espalmadinha,
Reprimidinha,
Pucanina,
Irritadinha."
(diz Maria da Tristeza, quase abraçando a TV)
Tristeza que não sabe chorar,
Que nem sabe se sequer é triste!
"A TRISTEZA QUE NÃO SABE SE É TRISTE??
HAHAHAHAHAHAHA."
"Ó estúpido, para de te rir. Ela diz que não é tristeza que sente
Que é confusão
Surdez,
Raiva."
"Aquilo é tudo meio que má educação, não?"
"Talvez, filho, pois, talvez,
Mas ao menos não anda a dizer que está triste a toda a gente.
É remetida para si.
Fecha as pernas.
Não é galdéria."
"Olha, pois, dizes que não é galdéria,
Mas está aqui a inventar muito na televisão, não?
A vomitar
Sobre a tristeza bem educada,
Que diz que é puta,
Mas que é santa,
Mas que é puta,
Eu cá já não percebo nada, sinceramente!
Mas o que ela quer é que tenhamos pena!
Não percebeste já, Maria da Tristeza?"
É muito esperta, é!
Mete-se aqui a dizer que não é triste,
Que é uma zangada,
Que não sabe ser triste,
É só para chorarmos com pena!"
"Como choramos com a novela das 18h?"
"Nem mais, Maria da Tristeza!"
"Finge que finge a tristeza,
Como finge atos de bondade,
Carinho
E preocupação
Para que a amem
Bem amadinha."
"Já dizia o Sardet, homem!"
"Amoooooor com
Amoooor se pagaaaaa!"
“Nem mais!"
(ai se kant visse isto, valha-me Nossa Senhora do Imperativo Categórico
[olha olha, agora o parênteses apareceu para se armar em intelectual!],
Cala-te parênteses do meu parênteses, toda a gente teve filosofia no secundário, não se é especial por se saber quem é o Kant, burro de merda!
[Burro és tu!] ).
"É uma fingida, é o que é!"
"Pois, agora que vejo... é mesmo atriz de novela turca! Aquele cabelo…
Até o Goucha se deixa enganar,
Olha me para isto!"
"Nem mais!
...
"Ó, MARIA DA TRISTEZA, OLHA O ASSADO, MULHER!"
"ESTÚPIDO, NÃO TE DISSE PARA METERES ISSO MAIS BAIXO!?
NÃO OUVI O RELÓGIO DA PORRA DO FORNO À CUSTA DO GOUCHA E DESTA LOUCA TRISTE QUE NÃO É TRISTE!"
"Ó, mulher, tu já és surda, também não adiantava muito..."
"PRONTO, JÁ ESTÁ TUDO ESTURRICADO!"
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