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“Icarização” da Arte Feminina, Sally Rooney, e rímel

  • Foto do escritor: Sofia Dias
    Sofia Dias
  • 28 de jan. de 2023
  • 7 min de leitura

Atualizado: 29 de jan. de 2023

Linda Nochlin, em 1971, fez uma das perguntas mais provocantes do meio artístico: “Porque é que não houve grandes artistas mulheres?”. Evitando o impulso de começar a nomear todas as grandes artistas da história quando confrontada com esta ideia, Nochlin argumenta que não é que estas artistas não tenham existido ou que não fossem “grandes”, mas que a sua “grandeza” nunca lhes trouxe retorno, quer em termos de capital económico ou social, por causa dos obstáculos institucionais que impedem as mulheres de serem consideradas “génios”, como a maior parte dos seus companheiros masculinos.


Ora, desde 1971, três movimentos feministas ocorreram e certas artistas femininas conseguiram atravessar a linha que as separava dos homens, quanto a obter capital económico e social da sua arte. Mulheres como Sally Rooney, Ottessa Moshfegh e Phoebe Waller-Bridge são mulheres integradas no meio literário e artístico, cujo trabalho recebeu reconhecimento internacional. A maioria de nós já leu Normal People, My Year of Rest and Relaxation e começou a ter um fraquinho por padres jeitosos, obrigada, Andrew Scott, ámen.


As obras destas três mulheres parecem ter influenciado a cultura popular, mas, segundo muitos ensaístas, de forma negativa. O argumento geral parece ser o seguinte: este tipo de media incentiva e romantiza uma alarmante moda protagonizada por mulheres brancas que se distanciam do mundo real e se divertem na sua miséria induzida pelo Patriarcado, moda esta apelidada de “Feminismo Dissociativo”. Este último pode ser definido como a decisão de alienação e dissociação da realidade, constituindo uma reação à extrema positividade aclamada pelo tão querido “girlboss feminism” ou chamemos as coisas pelo nome, feminismo liberal, a bem da produtividade. Dissociação voluntária, argumentam muitos ensaístas, é um privilégio reservado para mulheres brancas e ricas, enquanto mulheres marginalizadas não podem simplesmente ignorar a sua opressão.


Assim, o tipo de media criado por Rooney, Moshfegh e Waller-Bridge é visto por estes críticos como uma espécie de "pornografia triste", em que mulheres brancas e privilegiadas decidem dissociar-se da realidade e, portanto, daquilo que as oprime, nadando na sua própria miséria e desistindo da luta contra as vicissitudes do Patriarcado, ao adotarem comportamentos tóxicos e "não feministas". Esta visão partilha a ideia de que tais criações artísticas têm uma influência negativa em muitas mulheres.


Ora, como amante de literatura e mulher feminista que leria a lista de compras de Sally Rooney, tentarei demonstrar, na esperança que não adormeçam a meio, que argumentar que as obras destas três mulheres são, na sua totalidade, prejudiciais para o movimento feminista é ignorar completamente as complexidades narrativas e o propósito do seu trabalho em si.


As mulheres retratadas pelas três artistas mencionadas, ostensivamente equipadas com todas as armadilhas sociais para dominar o mundo (ser branca, rica, bonita, serem recetivas aos homens), focam-se em dirigir ódio para consigo mesmas, para com os seus corpos, para com a sua maneira de falar, etc. Poderemos, face a isto, propor a seguinte questão: porque é que estas mulheres, que seguram a maior parte do poder social, estão tão interessadas em destruir-se, em dissociarem-se da realidade? (É quase a mesma coisa que questionar o porquê do Hamlet ter enlouquecido mesmo sendo um príncipe bonito – “Oh não te mates, és tão sexy!”)


Há algo estranho em discutir dissociação como uma escolha consciente nestas obras literárias, isso seria praticamente ignorar as narrativas especificas onde estas personagens estão integradas e as mensagens por trás das mesmas. Este tipo de media tem um foco interior psicológico por uma razão. É importante realçar que as personagens têm “adereços” externos sociais que as fazem politicamente privilegiadas, são brancas, bonitas, de classe média/média alta (tal como as suas autoras), mas não é como se a sua autoaversão apenas existisse num vácuo, com nenhuma razão aparente, onde o porquê de tal sentimento existir apenas se resumir à intenção das suas autoras de escreverem mulheres a odiarem-se a si mesmas.


O que liga estes textos uns aos outros é o facto das suas personagens se apresentarem, inicialmente, como distantes e frias como uma resposta a um tipo de episodio traumático. A tristeza das protagonistas existe por uma razão - Fleabag perde a mãe, Marianne de Normal People carrega danos psicológicos não resolvidos, provenientes do abuso que sofreu nas mãos do seu pai, abuso que o irmão continuou a prolongar, por ter aprendido tal comportamento e a protagonista de My Year of Rest and Relaxation, que muitos apontam como sendo a personificação da romantização das doenças mentais, é mais uma sátira à desumanização e alienação provocadas pelo capitalismo e a grotesca esterilidade da riqueza. A personagem de Moshfegh é um avatar do padrão de beleza, para simbolizar que esta consegue dissociar-se do mundo e mesmo assim sobreviver, devido à inércia da beleza num mundo capitalista, onde esta é o grande capital das mulheres.


Ainda que carreguem consigo grande poder social na esfera publica, devido ao seu privilégio, as protagonistas dentro das suas dinâmicas interpessoais não têm nenhum e é pela falta desse poder na esfera privada que se rebelam ou se destroem internamente. É verdade que é um privilégio objetificar-nos por dentro, mas o porquê de isso acontecer é revelado pela própria obra literária, não acontece porque "oh meu Deus, mulheres a chorar são tão atraentes, vou escrever um livro sobre isso!".


Não diria que estes trabalhos incentivam a uma fatiga para com o feminismo ou que o rejeitam, representam, sim, as contradições entre ser um ser humano que experiencia emoções universais e ser uma mulher que é culturalmente condicionada pelo Patriarcado e, por associação, um membro de um movimento coletivo de direitos que procura desconstruir esse Patriarcado. Eu gosto da atenção de homens, mas também sou feminista. É uma batalha que a maior parte de nós trava. Quando estamos a pôr rímel e uma voz dentro do nosso subconsciente vem sussurrar-nos ao ouvido “És uma falsa feminista, estás a utilizar um produto criado pelo mercado da cosmética para homens velhos e ricos ficarem ainda mais ricos, porque estão a conseguir capital à custa das tuas inseguranças, estás a apoiar e a perpetuar um padrão de beleza inatingível que te faz odiar a ti própr- FODA-SE, ESPETEI ESTA MERDA NO OLHO, ESTOU TODA BORRADA”. Pensar que uma mulher feminista não sucumbe ao Patriarcado, é acreditar que vivemos numa sociedade pós-moderna, onde o feminismo já não é necessário em primeiro lugar.


O problema com o “Feminismo Dissociativo” não está no texto em sim, mas sim na forma como a nossa cultura recebeu estes textos. O problema não está na tristeza retratada, mas sim na forma como esta é recebida. O marketing à volta destas obras é direcionado com uma linguagem de identificação. Em vez de descontextualizarmos os trabalhos destas artistas, deveríamos concentrar-nos na cultura corrente, em que mulheres na internet totalizam identidades e rótulos – “és uma clean girl? Uma cool girl? Uma female manipulator? Ah não, és uma sad girl? Sim! És uma Sally Rooney girl, tão miserável e atraente”.


Muitas mulheres fazem-no para criar um falso sentido para si mesmas, perante o sentimento de alienação que lhes é imposto pela sociedade e agarram-se, então, a identidades temporárias, que, claramente, as fazem consumir produtos para poderem integrar tal identidade. A utilização da tristeza como uma ferramenta de identificação e construção de personalidade ajuda a ridicularizar as criações destas três artistas. A tristeza retratada é objetificada, retirada do contexto e romantizada, algo que, curiosamente, muitos homens já andam a fazer há imenso tempo, através do Voldemort das criações masculinas, o famoso "male gaze". O embelezamento da tristeza feminina tem muitas camadas, por isso não me irei alargar mais neste tópico (talvez escreva outro texto sobre isso, veremos).


Para além disto, representar uma experiência universal feminina nem sequer é a intenção das autoras, muito menos elaborar um modelo perfeito do que deve ser uma verdadeira feminista (o que spoiler alert, também não existe realmente). Rooney, escritora marxista, revira os olhos quando críticos apelidam o seu trabalho como “a representação perfeita do que é ser mulher no século XXI”. Apesar de não ser uma escritora internacionalmente reconhecida, contorceria o nariz se classificassem as crónicas que escrevo como um espelho de uma qualquer experiência feminina universal, só porque tenho como protagonista uma mulher condicionada pelo seu género. Nem me atreveria a tal disparate.


A arte criada por mulheres que conta histórias especificas é mais forte do que aquela que tenta contar uma história que engloba todas as experiências femininas, algo que estaria constantemente e essencialmente (palavra engraçada) a excluir grupos de mulheres. Os momentos em que Waller-Bridge é explicitamente política, em que Rooney faz as personagens embarcarem em discussões acerca do materialismo dialético para provar um argumento, apesar de interessantes, são as partes menos fortes das suas obras. A arte de ambas é impactante, porque as mensagens e os temas são “transpirados” pela obra e não contados por ela. Esta torna-se verdadeiramente revolucionária nos momentos em que não o tenta ser diretamente.


Rooney escreveu:


“Não sei se já te mencionei isto antes, mas há alguns anos comecei a escrever um diário, ao qual chamei de 'o livro da vida'. Comecei com a ideia de escrever uma entrada curta por dia, apenas uma linha ou duas, descrevendo algo bom. Suponho que por 'bom' queria dizer algo que me deixou feliz ou me trouxe prazer. (…) E ler essas entradas agora, lembrou-me do que senti ou pelo menos do que vi, ouvi e notei. (…) O rosto das pessoas, o clima, o trânsito, o cheiro de gasolina, a sensação da chuva, coisas completamente comuns. E assim até os dias maus eram bons, porque eu sentia-os e lembrava-me de os ter sentido. Havia algo delicado em viver assim - como se eu fosse um instrumento e o mundo tocava-me e reverberava dentro de mim. (…) A certo ponto, pensei que era impossível sentir novamente o que aparentemente senti uma vez em relação à chuva ou às flores. Não foi só porque falhei em ser encantada por tais experiências sensoriais – é que eu parecia já nem as ter sequer. (…) Algumas noites atrás, estava num táxi a ir para casa depois do lançamento de um livro. As luzes nos escritórios vazios lembravam-me de alguma coisa, e eu estava a pensar em ti, a tentar imaginar a tua casa, acho eu, e lembrei-me que recebi um e-mail teu, e ao mesmo tempo pensei no Simon (…) De repente, o mundo parecia capaz de incluir essas coisas boas novamente, e os meus olhos eram capazes, o meu cérebro era capaz, de recebê-las e entendê-las. (…) lembro-me de pensar aonde quer que eu vá, tu estás comigo, e ele também, e enquanto vocês viverem, o mundo será bonito para mim.”


A genialidade (não tenham medo, acontece, às vezes uma mulher é genial) das obras femininas encontrará sempre casa em excertos como o em epígrafe, encontrará a sua rebeldia, o seu teor revolucionário entre as estrelinhas ou melhor entre a chuva, entre as flores, entre o clima, entre o trânsito. Retratar depressão feminina em histórias especificas e o conflito interior das protagonistas e explicar o seu porquê, através de narrativas literárias, é construir uma versão mais complexa de feminilidade no espaço público, em que uma mulher não é uma "girlboss babe", nem uma dona de casa. Não tentemos tornar a arte das mulheres unidimensional, não caiamos na tentação de a transformar num Ícaro, não sejamos o sol e não lhes derretamos as asas, abracemos os seus sucessos e aprendamos com os seus fracassos.



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