gato na caixa
- Sofia Dias
- 7 de out. de 2022
- 3 min de leitura
O chá queima-me os lábios e volto a colocar a chávena no balcão da cozinha. O Silêncio fez xeque-mate ao Barulho, mas os livros nas estantes falam uns com os outros. O Sol mudou de turno com a Lua. O meu corpo sente-se cansado, a minha cabeça está a correr maratonas. Volto a pegar no chá, mas imagino que sou a Joana a bebê-lo. A Joana pegaria na chávena com segurança, mas também com delicadeza. Levá-la-ia aos lábios, enquanto te olhava com os olhos grandes verdes. Depois de ter aquecido a garganta, falar-te-ia dos livros para gente grande que anda a ler, diria como eram revolucionários e perguntar-te-ia acerca das tuas aventuras.
Levo o chá comigo até ao sofá. Não tenho lido nada. Começo a ler um livro, farto-me dele. A minha corrente relação com livros é igual à relação do Pedro com mulheres. Começa a ler uma, gosta dela, embrenha-se nas suas palavras, na sua história e a meio cansa-se dela, porque diz que o enredo é lento.
Volto a beber o chá, mas, desta vez, a Joana sai do meu corpo. Pergunto-me se o Pedro ainda se sente envergonhado quando o meu nome surge em conversas. Antes, tinha de sair da sala, porque as bochechas viravam da cor do meu verniz vermelho. Agora que o verniz secou, acho que o sangue dele já não ferve com a minha metafísica incoerente, com as minhas declarações de amor impulsivas e com a minha maneira de falar entusiástica, só corre lentamente, sem grandes sobressaltos.
Ultimamente, tenho-me sentido pequena. Estendo as minhas pernas no sofá, vejo que elas não diminuíram de tamanho, mas há qualquer coisa em mim que encolheu. A minha mãe contou-me que, às vezes, o coração dela torna-se tão pesado que tem de lhe retirar algumas partes para ele não afundar. Para mim, esse processo é difícil, sempre fui uma acumuladora, guardava todos os postais que me davam nos anos quando era pequena, apesar de saber que nunca mais ia olhar para eles. Subtrair coisas não é comigo, muito menos em matemática dos sentimentos, a minha mãe diz-me que tenho palavras no olhar e talvez seja verdade, porque eu cá nunca retirei palavras às ficções do meu coração. Mas, lá pequeno ele fica, comprimido, com a mesma massa, mais apertado e sufocado.
Tenho saudades das conversas que tinha com a minha mãe sobre os naufrágios emocionais dela que aconteciam esporadicamente, porque às vezes a água abala tudo independentemente do quão bom és a fazer contas de subtrair. Tenho saudades do cheiro de mãe dela e da casa dos meus pais, mas sei que se os for visitar vou ter saudades de Lisboa. Talvez a minha nova relação com livros e a relação do Pedro com mulheres se assemelhem à minha relação com lugares. Nunca estou onde quero estar e quando estou algures nunca lá estou, estou a fantasiar com outros sítios, dos quais sei que também me irei cansar rapidamente.
Na festa da semana passada não estava lá, estava no sonho que tive na noite anterior. Ainda assim, lembro-me da música que os meus ouvidos conheceram nesse dia e da conversa da Catarina e da Joana sobre Impressionismo, competindo acerca de quem era a detentora do comentário mais inteligente, enquanto eu dizia apenas que achava as cores dos quadros de Monet bonitas. Lembro-me de lhes querer contar sobre o sonho que tive - sonhei que era um gato, que vivia numa caixa e que saía da lá por uma porta pequenina.
Não partilhei a metamorfose kafkiana que se passou no meu subconsciente com elas, porque sabia que a situação ia ser psicanalisada, do género: “Luísa, há algo que te faça sentir sufocada? Sentes-te uma espetadora na tua própria vida?” Não sei, Joana, sonhei que vivia numa caixa e pronto. O que eu queria que ela me respondesse era: “Olha, no outro dia sonhei que era um triângulo.” e pronto estava feito, eu sorria, pegava-lhe na mão, encontrava um guardanapo, tirava uma caneta da mala e dizia-lhe: “Fantástico. Podes desenhar o triângulo do teu sonho? Devias esquecer o Impressionismo, és mais um Picasso, sim, Cubismo é mais a tua cara.”
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