tapete
- Beatriz Pereira
- 10 de mar. de 2024
- 2 min de leitura
Quando era mais nova, guardava os meus brinquedos debaixo do tapete. Nos desenhos animados diziam que era uma boa ideia. Além disso, era o que os meninos fixes faziam, e eu queria ser uma menina fixe. Certo dia, avolumaram-se e a minha avó levantou o tapete. Para ela eram só desarrumação – já tinha aprendido a lição. Para mim, eram ainda todas as minhas brincadeiras, adormecidas.
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Toda a gente tem um tapete emocional. Só mais tarde nos ensinam que afinal não é assim tão fixe guardar lá tudo. O volume começa a ser notável; as pessoas tropeçam nas peças que jurámos arrumar mais tarde; perdemos de vista aquilo que queríamos.
Eu sabia que o teu tapete tinha vários altinhos. Tomei muito cuidado para não pisar nenhum. Eram teus e, embora os quisesse arrumar contigo, queria também fazê-lo naquele que julgasses ser o teu tempo. Esquivei-me enquanto te dava a mão para me indicares o caminho. Tudo o que está escondido é frágil, e não o quero estragar.
Não posso mentir e dizer que esperava que nunca os arrumasses, mas queria que o fizéssemos devagarinho. Num dia, levantaríamos uma ponta e olharíamos para o primeiro brinquedo. Noutro, dir-me-ias como ele tinha ido lá parar. Tudo a seu tempo. Contavas-me a sua história. E só depois lhe arranjávamos um sítio. Talvez volvesses a lembrar-te dele mais tarde, o voltasses a deixar no tapete; mas não me importaria de o apanhar de novo contigo (ou deixar-te apanhá-lo sozinha; queria que fosses também capaz disso).
Suponho que levantámos algumas pontas, ainda que não tenhamos arranjado o lugar de arrumação ideal. Julgava que estávamos a fazer um bom trabalho... É que, sabes, às vezes, os tapetes são pesados demais para os levantarmos sozinhos. É bom sabermos que temos alguém que os pode erguer ao nosso lado, sem suspirar pela desordem ou ralhar-nos pelo pó acumulado.
Há quem doutrine sobre o poder superador de ganharmos essa força e massa muscular, mas quem assim o defende nunca conheceu a dor libertadora de recordar as histórias.
Como pode um só levantar e limpar o pó em simultâneo? Eu agarro, tu limpas. Não te preocupes, não o deixarei cair sobre ti.
Como pode um só superar a vontade inabalável de baixar o tapete assim que o agarra? Estou ao teu lado. Podemos só olhá-lo, até ganhares a coragem de o levantar. Podemos deitar-nos nele para perceberes que, no meio do seu existir obscuro, ainda é possível encontrar conforto.
Consigo aceitar qualquer frase que me apresentes para afastares uma paixão reduzida a chagas... Mas nada me faz perceber o porquê de abandonares quem observou contigo o horizonte, as marés, enquanto mostravas os pequenos montes do teu emocional.
A vulnerabilidade e a intimidade não deviam ser abandonáveis.
Faz-me sentir uma farsa. Se querias saber que inseguranças me deixaste, digo-te: foi essa. Fizeste-me sentir o maior amor da minha vida, e o maior abandono. No fundo, foi uma oportunidade de te compreender melhor. Deste-me tanto e deixaste-me com tudo nas mãos. O que faço com o amor que me deixaste? Ou nunca mo chegaste a dar? O que foi isto em que agarrei?
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