Rita e José Maria
- Sofia Dias
- 12 de jun. de 2024
- 3 min de leitura
Queridos avôs,
Vejo-vos em muita coisa que escrevo, mas, devido à minha poesia um tanto ou quanto reservada e até conservadora, tendo a guardar tais palavras para mim. Contudo, esta data especial parece-me ser justificação suficiente para abrir um pouco do meu baú a vós.
Escrevi algo assim no meu bloco de notas:
"Escrever sobre os meus avós parece ser um caminho sem volta para mim. Se pudesse escolher algo para ser, escolhia ser uma avó/avô. Regava o meu jardim, fazia os meus bolinhos, jogava às cartas com os velhinhos da rua, dava pão aos pombos, escrevia o meu nome em papéis que não sabia ler, contava histórias sobre ter ido para Lisboa trabalhar aos 12 anos sozinha, queixava-me de doer as costas, chorava com as mãos dadas às minhas rugas, não saberia nenhuma teoria existencialista sobre o significado da vida e mesmo assim teria tanto medo de a deixar. Eu sempre dormi na sala dos meus avós com o som de gargalhadas por trás no Natal quando era pequena, era assim que gostava de me ir embora, com o corpinho todo no sofá, a babar-me numa almofada que não devia ser babada, a cheirar canela e cheiro a avós e depois adormecer - partida para ganhar. Partida de acordar."
Eu sempre valorizei a juventude, gritei aos céus que ser nova era ser invencível, contudo, acho que ultimamente tenho tido um apreço especial pela velhice.
Trata-se tão mal aquilo que é velho, avós. Pegamos em mobília que já não gostamos e que temos há muito tempo e deitamo-la fora só porque a gaveta já não fecha tão bem. É cruel. Eu sempre gostei do hábito da avó de recuperar mobília que outros atiram para o lixo.
Sei que sou muito sortuda por ter avós tão novos. A maior parte dos avós dos meus amigos já não estão cá. Sei que sou muito sortuda por todos os bolos de cenoura com cobertura de chocolate que a avó faz. Sei que sou muito sortuda pelos chocolates que o avô me traz sem eu lhos pedir. Sei que sou muito sortuda por ter o meu quarto incólume quando a avó vem cá. Sei que sou muito sortuda por poder ouvir as histórias do avô e do tempo em que viveu em Lisboa. Sei que sou muito sortuda por virem sempre aos meus anos em Lisboa. Não há quadros que vos faça para a sala ou cartas embelezadas o suficiente que sirvam como agradecimento pelo carinho e atenção, que me deram durante 20 anos.
José Saramago escreveu o seguinte a Josefa, sua avó:
“Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos — e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas inumeráveis palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti — e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.
Não teremos, realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas — e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, por que te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: «O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!»
A velhice, agora, parece-me algo de sagrado, como se já tivessem ultrapassado a esquizofrenia da vida e vivessem num estado de calma e lucidez brilhante. Sinto-me pequena ao pé de vocês, no melhor sentido da palavra possível. Não importa o quão sábia eu fique, não importa que teorias aprenda, não importa que curso eu tire, não importa que palavras eu escreva, sinto que transportam toda a sabedoria do mundo num dedo e eu serei sempre a menina com a mochila grande, que demorava demasiado tempo a aparecer no portão da escola.
Feliz anos de casados! Obrigada por terem dado origem à minha existência!
Do charoco,
Da vossa Pia.
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