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Peço desculpa

  • Foto do escritor: Sofia Dias
    Sofia Dias
  • 4 de ago. de 2024
  • 3 min de leitura

Desculpa-me, “des” – “culpa” – “me”. Tira-me a culpa. Arranca-a do meio peito. A culpa não é tua, é minha, mas tu tens o poder de retirar o que é meu, de me deixar menos pesada. Tira-a de mim, sei que não ficas com ela, por isso deita-a fora. Envia-a para o vácuo do Universo.


Segundo a psicologia, ou pelo menos, segundo as minhas distantes aulas de secundário sobre o tópico, a culpa é a frustração causada pela distância entre o que fomos e a imagem criada pelo superego daquilo que achamos que deveríamos ter sido. Acho que sinto muita culpa. Acho que muitas mulheres sentem muita culpa. Acho que muitas mulheres sentem frustração relativamente ao que foram, comparativamente com o que acham que deviam ter sido.


Se calhar, estava nua demais. Se calhar, não estava nua o suficiente. Se calhar, devia ter depilado melhor o bigode. Se calhar, devia parar de comer pão (ai, mas eu gosto tanto de pão...). Se calhar, devia ter filhos. Se calhar, não devia ter filhos. Se calhar, devia ter-lhe feito um broche (caralho, como é que se faz um broche sem vomitar no chão do quarto? Eu sempre odiei quando o médico me colocava aquele pau de madeira, parecido ao de um gelado, pela goela abaixo para ver se estava com amigdalite.). Se calhar, devia ter namorado mais na adolescência. Se calhar, devia ter namorado menos na adolescência. Se calhar, devia ter bebido mais um copo. Definitivamente, não devia ter bebido mais um copo. Se calhar, devia parar de partilhar que leio livros, faz-me parecer emproada, livros em si têm uma aura emproada. Se calhar, devia partilhar mais os livros que leio, são mesmo bonitos. Se calhar, devia parar de escrever. Se calhar, devia escrever mais. Se calhar, devia mostrar mais o que escrevo, promovê-lo. Se calhar, não devia mostrar o que escrevo, é indelicado, egocêntrico, parece que me estou a impor demasiado, parece que estou a ocupar espaço, parece que estou a gabar-me, parece que estou a “ser” sem correntes, sem ninguém dizer que algo aqui está errado, o que por si só é muito errado. Se calhar, devia ter mais orgulho nisto. Nisto que estou a fazer agora. Se calhar, devia beijar eu as minhas palavras primeiro e dizer, com firmeza: “O que escrevo é bonito. Escrevo bem. Sei pontuar bem. Há potencial nisto. A professora de Português tinha razão. Há que o admitir. É bom e necessário que eu o diga antes de todos os outros. O que está aqui escrito vale a pena ser lido. Não posso morrer na praia. Não posso. Recuso-me. Já chega de fingir que todos têm direito a gritar menos eu.”. Se calhar, devia esconder-me. Já foi tudo escrito. Já todas as coisas do mundo foram descritas. O léxico não precisa de mim. Definitivamente, não devia dizer que escrevo bem, devia deixar que os outros mo digam primeiro para eu me sentir bem comigo própria por pensar o mesmo. Se calhar, devia ser mais humilde. Se calhar, devia ser menos humilde. Se calhar, devia parar de pensar que ser muito humilde é ser muito bem educado. Se calhar, devia continuar a pensar que ser muito humilde é ser muito bem educado. Se calhar, estou num jogo moral comigo própria constantemente. Se calhar, sou boa feminista e boa pessoa (o feminista vem primeiro, claro). Se calhar, sou má feminista e má pessoa. Se calhar, sou boa feminista e má pessoa (e esta agora, hun?). Se calhar, estou numa luta constante entre o meu ego e a minha necessidade de ser considerada boazinha, virgem Maria Mãe de Deus, rogai por nós pecadores agora e na hora de sentir culpa, ámen. Se calhar, devia parar de sentir raiva para com os homens, por saber que a necessidade de sentir culpa é algo muito condicionado por ser mulher. Se calhar, devia aprisionar todos os homens numa ilha, apontar uma arma à cabeça deles e obrigá-los a pedir-me desculpa. Eles. Os homens. A pedir-me. A mim. (pleonasmo). Desculpa. Pagava para ver. Se calhar, tenho fetiches sexuais banhados em sadismo. Se calhar, com esta fui longe demais. Se calhar, só acho que fui longe demais, porque estava a ser objetivamente sexual e nós aqui na escrita somos muito conservadores. Ó, Sofia, e a frase do broche? Oh, essa já é muito batida, não faz mal. É como piadas com xixi e cocó. Okay, se calhar, já chega.


Se calhar devia parar de dizer "se calhar", porque, na maior parte das vezes, calha mesmo.


Peço desculpa por dizer "desculpa".


(Vou começar a pedir perdão.)


(Absolvição de todos os crimes, meritíssimo!)


(Já estou limpa, Senhor Padre?)

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