oxalá
- Beatriz Pereira
- 8 de out. de 2023
- 2 min de leitura
Atualizado: 30 de mar. de 2024
“Oxalá digas que sentes o mesmo” – foi exatamente o que pensei quando sobre flores e camomila te escrevi. Agora sei que cidreira teria sido mais acertado, se quisesse que o aroma até ti chegasse para te aquecer por dentro.
Escreveste-me sobre o tempo, sobre açúcar e coisas doces.
O açúcar não tem validade. Sabias disso? Sabias que, ao deixá-lo na caixa de correio, Mafalda o guardaria cuidadosamente num canto da sua despensa, verificando-o todas as noites para garantir que as formigas não se aproximavam?
No primeiro dia, ela olhou-o. Com carinho, contemplou o seu pacote, sentiu os seus finos grãos, e suspirou por saber que nada de tão doce lhe tinha sido oferecido há já muito tempo.
No segundo dia, ponderou-o. Talvez abrisse o pacote e partilhasse os seus grãos com as formigas que se tentavam aproximar. Um para cada uma. Seria egoísta? Era difícil admitir, mas queria cada uma daquelas pedrinhas para si.
No terceiro dia, entornou-o todo na sua caneca, e fez um chá. Não bebia chá com açúcar – só com mel –, mas manter toda aquela esperança, e sonhos, intocáveis num pacote, era inimaginável. Foi um processo muito rápido. Não se queria dar tempo para pensar duas vezes. Encostou os seus lábios gretados à caneca redonda e bebeu-o. Todo. Quente. Tal como raramente o havia feito. Quando a única coisa que restava no fundo da cerâmica eram resquícios de cidreira, respirou fundo e olhou pela janela da varanda.
Depois disso, deu uma meia-volta e saiu de casa. Olhar para trás seria ter medo. Medo do que é o seu passado, medo do conforto que estava a abandonar, e, sobretudo, medo da possibilidade de inércia se tornar demasiado tentadora. O olhar pela janela foi o último olhar para trás que se permitiu.
E, assim, Mafalda saiu. E tocou àquela que viria a descobrir ser a tua campainha.
~
Agora tocam-se mutuamente, e já não se chamam Mafalda e Alguém. Sou eu e tu. Lavam a loiça juntas, cuidam uma da outra, e tentam ter moves de dança. Encostam as suas peles nuas quando se deitam nos lençóis, e falam com os cães com uma voz aguda e amorosa. Recuperam o fôlego deitadas no peito uma da outra, enroscadas em braços capazes de um conforto singular. Há muito de doce em mim vindo de ti.
Sabe bem ter-te perto. Esta vivência lenta e intensa sabe a carinho, a paixão, a conexão, a atração, a paz, a sentido. É todo um sentido dado ao mundo – que de mundano nada tem.
Às vezes, o meu coração dói de tanto te amar. De tanto te pensar, tanto te querer, tanto te sentir. (...) Tens espaço reservado no meu coração – daqueles que descrevi, há muitos meses, como complexos de apartamentos inteiros. Talvez tenhas criado uma crise de habitação, por morares em mim. Mas, neste meu mundo, não há leis; e não te vou dar nenhuma ordem de despejo.
Obrigada por morares em mim. E por me deixares morar em ti.
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