O Meio (de Comunicação) Cru
- Beatriz Pereira
- 6 de out. de 2022
- 3 min de leitura
Ele chegava do trabalho. Pousava as botas, muito velhas, mas bem estimadas, e cumprimentava a esposa e os filhos. Trazia muitas cartas! Muito gostava eu quando o meu pai trazia cartas… Vinham de Lisboa, e eram quase todas dos meus tios - irmãos da minha mãe.
O meu pai, ainda com elas na mão, dizia: “Nunca sabemos que notícias traz uma carta. Por isso, vamos jantar em paz, e mais logo as abriremos.”.
E então, depois do jantar, sentávamo-nos todos à volta da mesa, a ouvir o meu pai ler as mensagens em voz alta. Com a barriga cheia, estávamos prontos para as boas e más notícias que podiam vir escritas naquele papel.
Isto contou-me o meu avô, em recordação do quanto significavam para ele este meio de comunicação tão… Cru, analógico, datado - e outros adjetivos que lhe queiram atribuir.
Que revolta podia eu sentir quando ele me diz “Vocês não sabem o que é ter esta experiência". Pois, claro! Vocês, velhos e experientes, acham sempre que o vosso tempo foi melhor. Vocês, velhos e sobreviventes da fome, rebaixam o ambiente tecnológico em que crescemos sem termos nós culpa nenhuma. Vocês, velhos e fabricantes dos próprios brinquedos e brincadeiras, olham para nós com a pena de quem viveu uma realidade muito melhor que a atual. Que posso eu fazer se não nasci há 10, 20, 40, 75 anos? Digam-me! Onde preencho o livro de reclamações?
Contudo, eu não reclamo, nem crio uma revolução à mesa de jantar, porque sei que ele está certo. No fundo, também eu partilho da sua tristeza. Quem me dera poder abrir a Caixa de correio e encontrar mais do que um anúncio de uma nova loja de esquina ou um panfleto do LIDL. Até a conta da luz deixou de querer viver na minha Caixa de correio.
Coitada. Da minha Caixa de correio, quero dizer. Ela agora contenta-se – alegra-se, grita de excitação – quando um envelope que não tenha a minha morada escrita a computador pousa nas Suas paredes.
Às vezes, tento reconfortá-La e dizer-Lhe que a culpa não é dela: "As pessoas acham que as cartas são um desperdício de recursos… Não ligues, Caixa. Para mim continuas a valer o mesmo.". Mas, também nessas vezes, acabo a partilhar da Sua melancolia. Não digo que quero voltar a receber uma pilha de contas da luz, água, e extrato bancário. Essas ficam bem no digital – gosto que lá estejam e acho que também elas gostam de lá estar. Mas quero, sim, voltar a arrecadar aqueles envelopes excessivamente ornamentados, com autocolantes de flores e selos que viajaram mais que eu. Quero o retorno do papel com caligrafias bonitas ou quase ilegíveis. Quero o retorno das artes plásticas em formato envelope, e das saquetas de chá a acompanhar um texto pensado, escrito a caneta arranhada sobre o papel. Quero o ritual de deixar as cartas nos correios. Quero o dever de procurar um postal para dizer aos meus pais por onde ando.
Sei que quero muito. Quero tanto… Mas quem somos nós sem o querer?
Por isto tudo vos peço: voltem a escrever cartas e a alegrar as Caixas do correio. Escrevam um texto ao vosso amigo que mora longe (ou perto), e coloquem uma recordação especial dentro do envelope. Lembrem-se que cada carta é como uma pequena cápsula do tempo, e que nenhuma notificação da vossa cloud de fotos superará o sentimento de agarrar, abrir e reler uma mensagem antiga a vós dirigida.
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