O cão do Coração e do Cérebro que come chocapic
- Sofia Dias
- 18 de ago. de 2022
- 2 min de leitura
Atualizado: 21 de ago. de 2022
O Coração pousa as chaves no aparador da entrada, tira os sapatos, faz uma festa ao cão, dirige-se à sala e o Cérebro, que ansiava pela sua chegada, diz-lhe: "Temos que falar."
Tremenda frase esta. Depois de ouvir estas três palavrinhas, todos nós ficaríamos nervosos e o Coração, aqui da nossa história, não é exceção. O Coração odeia falar de sentimentos com o Cérebro, sempre foram daqueles casais muito pouco melosos e muito pouco lamechas, mas parece que desta vez vai ter que ser. "Está bem", responde e senta-se no sofá.
"A casa está uma confusão. Deixas sempre tudo desarrumado. No outro dia, encontrei uma taça de cereais na casa de banho e uma escova de dentes na gaveta dos talheres. Estou farto disto! Até o pobre do cão come chocapic em vez de ração, o que me faz questionar quem come a comida do animal! Está sempre tudo do avesso. Eu esforço-me para arrumar a tua trapalhada. Levo os livros do chão para a estante, lavo a mancha de café do sofá, mas é sempre em vão. Os livros que arrumei têm as letras de cabeça para o ar, apercebo-me que lavei a mancha do sofá com leite e não com detergente e que ando a beber químicos com a ração do cão, ao pequeno almoço. Estou cansado, não fazes sentido absolutamente nenhum! Porque é que és assim?"
O Coração, já a lacrimejar lágrimas vermelhas, responde-lhe num sussurro baixinho: "Não sei. Não percebo nada do que faço, só sei que há algo em mim que me diz para o fazer. Sei que, para ti, usar o leite para cobrir acidentes não é o ideal e que não consegues ler as letras do avesso dos meus livros. Mas, eu consigo. Só consigo ler livros que tenham as letras do avesso. Disseste que eu não fazia sentido e eu nem sei que palavra é essa, nunca a ouvi. "Sentido", que coisa mais estranha! Sei que há algo de errado comigo. Eu sei, mas já tentei tudo para não ser assim. Faço coisas sem haver razão aparente para as fazer. Ajuda-me! Suplico-te! Não quero ser mais eu! Não desta maneira! Transforma-me noutro, rasga-me aos bocados, dobra-me as vezes que quiseres, faz um origami comigo, converte-me em avião de papel e atira-me de bem alto, mas, por favor, não me faças chegar ao chão! Não gosto do chão! Pensando bem, não me atires de bem alto que eu tenho medo das alturas. Atira-me de uma altura razoável. Olha, estás a ver o móvel do ikea horroroso que tu adoras e que temos no quarto? Atira-me de lá de cima, mas, por favor, não me faças cair!"
As lágrimas transformaram-se em pranto e a raiva do Cérebro em pena, os braços dele abandonaram o seu antigo lugar no colo e estavam, agora, enlaçados com o corpo do Coração. "Meu amor, acho que estamos condenados. É que, quando eu era menino e ainda não sabia ler livros com as letras desenhadas na direção certa, nunca me ensinaram a fazer aviões de papel, o que aprendi foi a fazer quantos queres."
Comments