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monstro

  • Foto do escritor: Sofia Dias
    Sofia Dias
  • 26 de jan. de 2023
  • 3 min de leitura

Demoro tempo até conseguir existir. Até sair de uma espécie de transe, que expande o meu coração, dilata as minhas pupilas e escreve nas paredes do meu ser, a tinta preta, o segredo para a bendita sensibilidade do Universo.

Habita em mim um monstro que dá origem à algazarra. Algo sem forma, sem cor, sem música. O meu monstro não canta, mas, foda-se, se ele sabe dançar!

Começa devagar. Um, dois, três. Um, dois, três. Um passinho para a esquerda, um passinho para a direita. Tenta fazer uma pirueta. Tenta dar uma cambalhota. Oh, não, que está a fazer o pino!

Fica cada vez maior e contraído contra as paredes escritas a tinta preta. Revolta-se, esperneia, estrebucha, choca contra o fígado, dá um mais cinco ao pulmão e finta o coração. Para, faz-lhe um sorriso ladino e diz-lhe “Encontrei-te, esconderijo fraquinho esse. Que comece a festa, meu companheiro! Dá-lhe música!”.

Um som estridente ecoa, é o coração aos soluços.

Desta vez, o monstro mexe-se como uma criança que estica as pernas e os braços ao som da música emitida pelo coração. Ri e grita. Fica alienado, lunático, doido. Os olhos das minhas paredes internas focam-se nele e lacrimejam poesia. A minha alma é todo um ecossistema complexo, bucólico, obrigado a não entornar, a não transbordar, a conter-se dentro de um bolso do casaco.

“Sofia, dorme.”

“Ó, mas tu não vês que o monstro está a dançar? Deixa-o em paz. O espetáculo que prossiga! Amanhã lidamos com os destroços da festa. Vamos lá!”

“Chega! Que desassossego! O mundo palpável, sem metafísica e versos endiabrados, quer falar contigo, vem conversar com ele.”

A minha cabeça lateja e deseja chocar contra a parede branca, a real, a externa, a que os meus olhos lhe apresentam. “Conversa? Que conversa? Mas e o monstro? Não posso conversar agora.” A cabeça doi. A parede branca torna-se mais branca, mais próxima. Antes que haja colisão, a criatura começa a tremer, a espumar-se, a perder-se, a cansar-se. Fura, quebra, explode e…

Foge.

A música cessa.

As paredes não choram poesia.

O silêncio vem com o vazio.

O meu interior deixa de estar povoado.


Nada o habita.

O mundo idílico já não me grita aos ouvidos, só ouço sussurros.

A cadeira é uma cadeira, é um objeto que serve para sentar, não é um ser que me pede para o embrenhar em palavras, em versos. A minha avó é a minha avó, não é um meio de transporte para os caules, paras as mãos, para o tato da saudade. As conversas que tenho são só conversas, não sabem a chocolate, não têm sabor nenhum, são como uma pastilha elástica muito mastigada. As palavras deixam de ser sensuais, não me despem, não me tocam, nem me acariciam, passam a ser infecundas, procedimentais e burocráticas.

No dia seguinte, vacinada contra a hipersensibilidade, olho-me ao espelho e vejo o meu reflexo sem pensar nas mil versões de mim que vivem todas num apartamento pequeno e sujo. Fecho a porta sem pensar que deixo para trás o museu do meu existir. Saio de casa, vejo o gato da vizinha que brinca com uma folha e não penso no facto do animal estar a fazer das folhas sonhos. Peço um chá, que não foi feito com as folhas dos sonhos do gato. Leio um livro cujas palavras não provocam clímax nenhum, não há um gemido que saia da minha garganta.

Regresso para o museu, sento-me no sofá vermelho, a Mona Lisa da casa, e sinto os olhos a destilarem.

Lamento a fuga do bicho patético, choro a sua deserção e o vazio que deixou.

Desejo que ele regresse e suplico para voltar a haver festa em mim, apesar de saber que não sou muito boa anfitriã. Rogo para que volte, mesmo reconhecendo que não seria ideal andar por aí com um monstro nas entranhas, é que, sabes, o homem do café não iria gostar das minhas travessuras e faria uma cara ridícula se lhe dissesse que queria um chá com as folhas dos sonhos do gato da Dona Celeste.

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