Detergente da roupa Skip e Garrafa de água Monchique
- Sofia Dias
- 19 de ago. de 2024
- 3 min de leitura
Atualizado: 22 de ago. de 2024
Bea, se estás a ler isto, não mudes o teu texto do “sobre nós” aqui, por favor.
Reli o que escrevemos agora e apercebi-me de que não quero que os textos sejam diferentes, apesar de tanta coisa já ter mudado.
Por exemplo, já não gostas tanto de grão como gostavas. Deves ter enjoado. Eu, ultimamente, reduzi a quantidade de tiramissu que como para não me acontecer o mesmo. Cada colherada daquele doce permanecerá como uma sensação divina nas minhas papilas gustativas.
No meu, escrevi duas frases ao enumerar aquilo de que não gosto que se repetem e isso irritou o meu eu de 2024. “não gosto de (…) pessoas rudemente honestas; de acordar muito cedo; de matemática e de pessoas demasiado sérias.” - deveria ter escrito - “não gosto de (…) pessoas rudemente honestas e também das que são demasiado sérias”. “pessoas” e depois “pessoas” logo mais à frente irrita-me. Gosto mais de matemática do que gostava quando escrevi o texto em 2022.
Éramos muito pequeninas. Eu leio aquilo e sinto-me um bebé de novo. Tínhamos acabado o nosso primeiro ano. PRIMEIRO ANO. Lembro-me da Marta nos escrever uma carta por estar orgulhosa de termos criado o girino (houve muita coisa que mudou, mas a forma bonita do amor da Marta não. E se mudou, tornou-se melhor ainda. Mais livre. Nunca me vou esquecer de chorar rios com o texto a la Caeiro que ela escreveu).
Eu sei que esta sensação de maturidade em comparação com o meu eu passado é normal, sei que para o ano vou sentir que era uma criança nas palavras que escrevo aqui.
Descobri tanta coisa sobre mim própria ao longo deste dois anos para além dos meus gostos e sei que tu também, mas não atualizemos o que dizemos ter descoberto agora ser, penso que os textos esporádicos que publicamos aqui já fazem isso por nós.
Acho que cheguei a um ponto em que considero que, no que toca a construir a minha auto-perceção, já não é interessante que o tempo avance – ou melhor, acho que cheguei a um ponto em que considero o seu avanço como a base central de uma espécie de ilusão que mantenho do que penso ser a minha vida, e que, enquanto eu espero para ver o que me acontecerá a seguir, estou apenas distraída em relação ao que está a acontecer agora.
Acho que escrever também é isto, é não saber o que se é no presente, mas ter de construí-lo por palavras, e só vivê-lo e reconhecê-lo depois ao reler o que escrevemos. É estar distraído para só depois se estar concentrado.
A linguagem é a única coisa capaz de parar o fluxo do tempo, porque existe no tempo, é feita de tempo. Quando em janeiro de 2023 pedias ao tempo para morrer, para ele te deixar em paz estavas a aprisionar o próprio tempo. NÃO É UM CÍRCULO ENGRAÇADO?
Por isso, deixemos cá ficar os nossos eus de 2022, para os podermos visitar, para podermos saber o que eles eram já depois de mortos. Misturemos os vivos com os mortos, porque em breve os vivos terão o mesmo desfecho que estes últimos, não os separemos como se faz nas conservatórias. Que o girino seja, por mais mórbido que pareça, o cemitério de muitas Beas e muitas Sofias. Prometo que não o digo de forma sinistra, aliás, estas nossas versões nunca morrem verdadeiramente, reciclam-se, mas dizer que o girino era como uma Valnor não seria tão poético.
Enfim, mas se quisermos ir por uma veia mais realista - é uma honra ser um Detergente da roupa Skip ao lado da tua Garrafa de água Monchique no contentor amarelo.
não mudarei. gostei da tua descrição sobre o tempo. é exatamente isso! colocaste por palavras aquilo que eu não soube identificar: "A linguagem é a única coisa capaz de parar o fluxo do tempo, porque existe no tempo, é feita de tempo". tão bonito, tão real. deixemos que o girino seja um cemitério; um acumular dos presentes.