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Algarves

  • Foto do escritor: Sofia Dias
    Sofia Dias
  • 22 de jul. de 2024
  • 5 min de leitura

Atualizado: 12 de ago. de 2024

Eu odiava presuntar-me com protetor solar. Achava que a minha pele era invencível aos raios ultra-violeta. A minha mãe tinha sempre que me pegar pelo queixo e espalhar o líquido branco pelas minhas bochechas e nariz, enquanto eu fazia caretas. Adorava o cheiro, mas odiava a sensação que aquilo deixava na cara.


Houve uma altura em que andava sempre com uma prancha de bodyboard atrás, acho que tinha um tubarão desenhado, já não me lembro. Caia muitas vezes naquilo e chocava contra muitos estrangeiros, mas era a maior diversão do verão, sentia-me muito veloz nas ondas.


Para além de bodyboard, também me dedicava a outros desportos - os meus pais faziam um jogo comigo, cada um pegava-me numa mão e levantavam-me sempre que vinha uma onda. Eu adorava, os braços deles é que não.


Era muito impaciente. Saia da água embrulhava-me na toalha, porque tinha sempre muito frio. Eventualmente, sem pensamento para me entreter, tornava-me arquiteta. Baldes acima baldes abaixo. Castelo feito, arquiteta aborrecida outra vez. Tinha fome. Íamos ao bar da praia almoçar, “Baguete com atum se faz favor!”. Lembro-me de sentir sempre os braços super queimados aí por ficarem sempre ao sol.


Levava-se a digestão muito a sério, se almoçávamos às 13h só se entrava na água às 16h. Uma tontice. Eu odiava. Não gostava do dolce far niente português. Precisava de ter alguma coisa da qual me fartar para passar à seguinte. Lia um bocadinho na espreguiçadeira a olhar para a apetecível água da piscina. Fartava-me. Ia para o hall do hotel e deitava olhares matadores aos miúdos que se tinham sentado no computador da zona de estar primeiro do que eu. Eles eventualmente saiam e eu entrava. Frizz. Vestir bonecas. Ver a compatibilidade do meu nome com o nome da minha paixoneta de 4º ano. Fazer pizzas virtuais. 16 HORAS.


Praia outra vez. A água estava sempre melhor de tarde, porque depois do sal da água quase engolir a minha boca, a minha boca engolia uma bolinha de berlim. Sem creme, por favor. Com creme é enjoativo. Sabiam que na altura a bolinha custava 50 CÊNTIMOS? Adoro-te, Algarve pré-gentrificado.


A praia de tarde era como se fosse o palco para o teatro da Sofia com 9 anos. Fingia que era sereia. Fingia que namorava com o menino que andava com uns óculos todos estranhos a ver os peixes de baixo de água. Fingia que tinha poderes, que era a protetora do mar e controlava as ondas. Era meio esquizofrénica, porque toda a encenação não acontecia só na minha cabeça, eu fazia gestos, falava alto para o nada. Gostava de ter ainda a esquizofrenias de antes, de ser só em mim, de que o verbo “ser” deixasse de ter espectadores com nomes próprios diferentes do meu.


A areia começava a causar-me urticária e implorava ao meu pai para ir comigo à piscina. Ele ia. Sempre. A piscina tinha uma parte muito funda e às vezes não podíamos nadar lá, porque ingleses ricos faziam lá mergulho. Lembro-me de pensar em como é que ninguém se afogava com aquelas garrafas que pareciam do peso de um elefante. As velhinhas depois começavam a hidroginástica, a minha mãe chegava e fazíamos com elas, dava sempre a "What doesn't kill you makes you stronger".


Os meus olhos ficavam muito vermelhos, porque a água da piscina era salgada, isso era sinal de que chegava de água por hoje. Tomávamos banho. Olhava-me ao espelho e estava coradíssima, tinha sempre um grande escaldão na cara, devido à luta do protetor.


Levava um telemóvel a fingir, que recebi como brinde no Mc Donalds, para o jantar do hotel, porque me fazia sentir mais crescida e uma malinha a tira colo.


O jantar era buffet e fazia misturas meio doidas, mas no fim comia sempre gelado. Tinha de tirar para a tigela duas bolas do gelado da arca, mas nunca ficavam bonitas, tinha sempre tanta dificuldade e o gelado parecia mesmo solidificado. Agora, faço bolinhas perfeitinhas, não sei se foi o gelado que ficou menos duro ou o meu braço que ficou mais forte.


À noite, havia sempre entretenimento. Um ano tirei uma foto com um papagaio no ombro. Outro ano, assustei-me por causa de um teatro com zombies ao som do thriller do Michael Jackson. Noutro, ouvia o senhor que cantava à Bob Dylan e escondia a cara, porque os meus pais decidiram começar a dançar ao som de “dancing queen”. Obrigava-os a jogar uno comigo para compensar a vergonha depois.


Lembro-me tão bem de tudo. Idolatro a minha memória por isto. O facto de virmos sempre para o mesmo hotel ajuda a que as memórias sedimentem cá dentro, o ambiente é sempre o mesmo. Já conheço o staff até. Sei que, por vezes, os chapéus de sol da piscina caem para dentro de água com o vento. Sei que a minha mãe é sempre a mais bonita na sala depois do jantar, com a pele a brilhar. Sei que a mesa de snooker nunca está livre. Sei que temos de dizer o número da porta do quarto antes de comermos. Sei que a piscina interior está cheia de xixi de bebés, porque também eu já a enfestei. Sei que se faz uma amiga na piscina mijada. Sei que o quarto cheira sempre a limpinho. Sei que uma vez nessa semana trocamos o almoço pelo jantar e vamos jantar a Alvor e passear pelas ruas cheias de lojas com souveniers, de barraquinhas com anéis e gelatarias de salivar.


Sei que, às vezes, tinha saudades de casa. Da minha cama. Do cheiro das paredes. Eu tinha sempre saudades de casa em viagens. Sempre fui muito bebé.


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Este texto é raro. Tive necessidade de o escrever para motivos futuros, o que não acontece, normalmente, com os outros. Os outros ou são um vómito de pensamento que tem eficácia imediata aquando do alívio de uma enxaqueca ou são um exercício de criatividade, que não tem necessariamente motivos para além daquilo que é em si - um exercício de criatividade. Escrevi-o para não me esquecer do que diz. Servirá como o post it com o nome da coisa que o doente de alzheimer já esqueceu, como no "Cem Anos de Solidão" quando a doença do esquecimento infesta a aldeia. - não sei que nome tem este objeto estranho em que me sento, mas nada temas, eu presente, porque o eu passado etiquetou o objeto, chama-se “cadeira”. O post it das férias de verão no Algarve vai ter de ser maiorzinho, que não deve caber tudo.


Escrevo isto, a chorar baba e ranho no hotel de sempre, para que a alérgica a protetor solar não se atreva a sair de mim. É a menina de quem mais gosto e pela qual estou perdidamente apaixonada. Roubou o meu coração de 20 anos e a foto de 2014 a la Pirata das caraibas com o papagaio no ombro é a prova dos seus delitos expropriadores. Coração alvo de pirataria mesmo.

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